Jogo de azar ou meta cultural? A complexidade e o perigo da busca pela riqueza nas apostas via celular

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O debate sobre jogos de azar está cada vez mais frequente nas rodadas de amigos, nos grupos de família e até nos espaços de trabalho.

As opinões sobre o tema são usualmente conflitantes: de uma lado os que contam histórias de trágicos fracassos; e de outro os que contam vantagens encantadoras.

No passado, os jogos de azar compreendiam um universo limitado, como por exemplo, o baralho, a sinuca e as máquinas de caça níqueis. Porém, o presente trouxe um novo formato e o que antes era de acesso difícil, seletivo e clandestino, agora é acessível, em muitos casos legal e passível de ser praticado a qualquer hora e em qualquer lugar. O baralho virou um item obsoleto frente aos “aviadores”, “tigres” e “minas” com título em inglês.

Mas o que há de errado nisso?

A pergunta é excelente, pois ela pode ser respondida de forma simples, como por exemplo, justificando que não há nada de errado, pois se trata de uma questão de livre-arbítrio, e quem escolhe jogar sabe das consequências; ou, em sentido contrário, que se trata de uma mazela argumentada pelo entendimento de que existe uma programação algorítmica programada para o lucro das bancas, retirando a ideia de sorte, afirmando a certeira derrota financeira, social e humana da maioria absoluta dos usuários.

Todavia, é complicado responder qualquer pergunta sem levar em consideração algo mais complexo como a própria dinâmica da sociedade, vejamos:

A estrutura social que condena os jogos de azar é a mesma que cobra sistematicamente que a humanidade seja cada vez mais economicamente produtiva.

Para entender ou tentar entender esse processo, faz-se necessário mergulhar na teoria do fato social de Durkheim, onde uma força geral, externa ao sujeito e coercitiva, caso não seja seguida, acaba moldando os indivíduos na vida em sociedade. E distúrbios nessa regra, a anomia, acabam tendo desfechos ruins.

Essa teoria foi adaptada por Robert Merton, destacando uma sociedade que impõe metas culturais, como a de riqueza, e meios institucionalizados para alcançá-la, onde quase sempre são ineficazes, separando a sociedade em dois grupos: sucesso e fracasso. Algo que naturalmente acaba impulsionado a busca pela riqueza por outros meios: o crime, os jogos, as loterias etc.

Essa busca efêmera pelo sucesso produz uma sociedade volátil ou como diria Bauman: “líquida”. A metáfora da liquidez social é um contraponto aos tempos da “certeza” crítica, da análise segura, dos estudo dos fatos antes da ação, ou seja, da busca por decisões sólidas.

A sociedade atual se aproxima cada vez mais do que Aldous Huxley escreveu em sua obra distópica “Admirável Mundo Novo”. Para ele o meio mais eficaz de escravizar a humanidade seria o vício e a anulação de suas angústias não patológicas (medicamentos). Na obra, bastava um comprimido chamado “soma” e tudo ficaria bem.

Assim, se de um lado os jogos de azar simbolizam uma tragédia social, agravando a pobreza e produzindo danos psicológicos nos jogadores, em suas famílias e na própria comunidade. Por outro lado, os jogos de azar também representam a meta de um sistema que cobra a saída da chamada “zona de conforto”, exigindo uma prosperidade veloz, sem mérito e quase sempre inalcançável, que frustra e rotula de “fracassado” àqueles que não topam os riscos. Em suma, não se trata de jogos de azar, mas de um fato social, uma ordem do sistema, que certamente buscará outros meios caso os jogos sejam limitados.

A reflexão sobre o tema não está nos jogos em si, mas em algo mais profundo, algo que envolve nosso sistema financeiro, a ideia de capital especulativo, os valores humanos, a vida em sociedade, o bem-estar social e, sobretudo, a necessidade de conscientização sobre a relação de equilíbrio entre o complexo biopsicossocial e os diversos estímulos de ordem econômica predatória.

Marcelo Siqueira de Oliveira
Professor, poeta e cronista.

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