Nas imagens do festival Shehuo do fotógrafo Zhang Xiao, uma antiga celebração ainda observada no norte da China durante o Ano Novo Lunar, a vida rural ganha vida.
Aldeões vestidos como grous, galos e leões míticos posam para retratos em meio à plantações.
Artistas fantasiados desfilam por casas de tijolos em cenários nebulosos, os olhos de suas máscaras aparentemente perdidos em pensamentos. Num campo de trigo colhido, um grupo de quase uma dúzia de homens faz fila para segurar um boneco de dragão colorido.
Em seu novo livro “Community Fire”, Zhang disse que queria capturar a “desconexão” surreal entre a vida cotidiana das pessoas e as fantasias míticas que elas assumiam.
“Os personagens pareciam vir do próprio céu, e formavam um enorme palco teatral que transcendia os limites da realidade, transportando um coletivo de sonâmbulos para um mundo de sonhos”, escreveu o fotógrafo. “Andei entre eles e os fotografei em silêncio, porque não queria acordá-los.”
Enraizados em práticas agrícolas milenares de adoração do fogo e da terra, os rituais folclóricos de Shehuo (frequentemente traduzidos como “terra e fogo”) tradicionalmente envolviam orações por boa sorte e colheitas abundantes, ou para afastar demônios.
As festividades variam entre as regiões, mas agora é comum ver vários artistas desfilando pelas ruas ou fazendo encenações.
Hoje, as comemorações coincidem com o Ano Novo Lunar, que começou no sábado (10).
Com isso, o festival passou a abraçar muitas das tradições – como as feiras dos templos e as danças do leão – praticadas em toda a China durante este período.
As celebrações do Ano Novo Lunar geralmente duram mais de duas semanas, com o festival Shehuo acontecendo no 15º e último dia da temporada.
As celebrações de Shehuo foram reconhecidas pelo governo chinês em sua lista de “patrimônios culturais imateriais”, similar à da UNESCO.
Mas o lugar do festival num país em rápida urbanização continua ameaçado, disse Zhang, acrescentando que a maioria dos artistas que encontrou migraram para as cidades e só regressaram às suas aldeias para o feriado.
“A importância dos costumes tradicionais não consegue mais atender às necessidades da vida moderna”, disse o fotógrafo à CNN por e-mail.
“Os jovens de hoje estão mais preocupados com a internet e os jogos. Eles nem sequer estão dispostos a tentar compreender as culturas tradicionais. Acho isso triste.”
Ameaça do e-commerce
Na esperança de documentar o desaparecimento das tradições do festival, – e os trajes e adereços associados a elas – Zhang passou mais de uma década fotografando eventos Shehuo em aldeias nas províncias de Shaanxi e Henan.
Uma seleção das imagens, que foram tiradas entre 2007 e 2019, está atualmente em exibição nos Estados Unidos, no Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard.
Além de capturar rituais e o folclore, as fotos falam da proliferação de artigos produzidos em massa que transformaram o festival desde a virada do século XXI.
Uma imagem mostra uma pilha de máscaras plásticas inexpressivas; um conjunto de 12 fotos misteriosas mostra cabeças sorridentes penduradas em árvores em sacolas frágeis.
Várias páginas do livro de Zhang são dedicadas a capturas de tela da plataforma de compras Taobao, de propriedade do Alibaba, onde os itens relacionados ao festival Shehuo podem ser comprados a “preços de banana”.
Eles variam de uma elaborada fantasia de dança do leão para duas pessoas, oferecida por 360 yuans (R$ 250,43), a variadas decorações para a cabeça com preços inferiores a 17 yuans (R$ 11,83).
A ascensão dos produtos baratos e do comércio eletrônico tem sido um fenômeno misto para estas aldeias.
Alguns vilarejos – incluindo Huozhuang, na província de Henan, que aparece fortemente no projeto de Zhang – aproveitaram a oportunidade.
O fotógrafo visitou e documentou várias pequenas oficinas familiares que compram pela internet produtos inacabados em grandes quantidades antes de finalizá-los manualmente e revendê-los em plataformas como o Taobao para obter lucro.
“Em algumas aldeias, praticamente toda a população foi mobilizada para produzir e vender adereços Shehuo”, escreve o fotógrafo no seu livro.
Mas o que por um lado é uma oportunidade econômica, por outro gera uma perda de habilidades e costumes tradicionais.
Materiais como papel e bambu foram substituídos por armações de arame baratas, plásticos e tecidos sintéticos, disse Zhang, que cresceu em uma área rural da província chinesa de Shandong, mas agora mora em Chengdu, uma das maiores metrópoles do país no sudoeste.
Um artesão disse a Zhang que, nas palavras do fotógrafo, “lamentava o desaparecimento gradual do artesanato tradicional”. Contudo, a maioria dos aldeões que o fotógrafo encontrou eram indiferentes à perda do patrimônio cultural, afirmou.
E embora Zhang, como documentarista, tenha assumido o papel de “espectador silencioso” durante a missão, ele ainda assim expressou pesar pela rápida comercialização do festival.
“As pessoas não estão focadas em como melhorar a qualidade dos produtos e o artesanato”, disse o fotógrafo, que atualmente trabalha num documentário sobre a vida na China rural.
“Em vez disso, eles estão obcecados em fabricar esses produtos o mais rápido possível e com o menor custo, para obter vantagem em relação à concorrência. Isto levou a um declínio gradual na qualidade dos produtos, e toda a indústria caiu num ciclo vicioso de guerras de preços.”
Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.
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