Imagine ficar mais de três meses internado com covid-19: parte desse período intubado, sem contato com a família, sofrendo com dor, escaras, dificuldade para respirar, infecções e sequelas. A CNN Brasil ouviu histórias de pessoas que passaram por essa situação e ainda enfrentam problemas causados pela doença.
Arlete, Alfa e Rômulo moram em diferentes partes do país e estão, neste momento, em recuperação depois de quase ou mais de 100 dias internados com Covid-19 em hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde).
Enquanto estavam hospitalizados, as famílias precisaram lidar, em casa, com a espera diária e angustiante por notícias.
“Todos os dias a gente ficava apreensivo, porque um dia o relatório era positivo, no outro não. Muitas vezes, a gente desanimava, se perguntava se ela ia conseguir”, conta o representante farmacêutico Edinei de Faria, 49, que teve a mãe, Arlete Catarina de Faria, internada por 120 dias no Hospital São José, de Joinville (SC). “Foram 40 dias sem visita, só recebendo notícias por telefone”, conta o filho.
A CNN já mostrou que internações por Covid-19 duram, em média, 22 dias. Entre os que precisaram de ventilação mecânica e foram para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva), a permanência média é de 11,6 dias. Os dados foram levantados pelo Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS).
Em alguns casos, no entanto, esse período se transforma em meses de angústia no hospital, e o retorno para a casa significa o início de outra difícil etapa, com fisioterapia, limitações de fala e de movimentos. Tarefas que eram simples antes da doença, como falar ao telefone, tornam-se agora um desafio.
“Peço desculpas, mas hoje o Rômulo não pode conversar porque está com muita dor. Eu dei os remédios e ele está dormindo”, disse à CNN Roseliane de Oliveira, 31, esposa de Rômulo Gonçalves, que ficou 97 dias internado por causa da Covid-19.
A seguir, contamos algumas dessas histórias de vitória, mas também de uma luta ainda diária de pacientes de longas internações e de seus familiares.
“A gente sempre via, pela televisão, pessoas internadas com Covid-19, mas quando é uma pessoa que a gente ama, não tem explicação o que a gente passa. É um sofrimento grande. A gente acha que não vai vencer”, comenta Edinei, filho de Arlete.
Quem é o paciente das longas internações
Coordenador do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar e integrante do Comitê de Enfrentamento da Covid-19 no Hospital Estadual de Bauru (SP), o médico infectologista Lucas Marques da Costa Alves diz que os perfis mais comuns entre os pacientes com longos períodos de internação por Covid-19 são idosos, obesos e hipertensos.
“Os pacientes com muito tempo de ventilação mecânica precisam de um cuidado fisioterápico importante, porque acabam perdendo massa muscular, têm predisposição à pneumonia, insuficiência renal, problemas relacionados à fibrose pulmonar, além de maior chance de ter escara”, explica.
- A pesquisa do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) mostra que os internados com Covid têm, em média, 64 anos de idade, sendo 60,5% homens. Cerca de 33,6% têm diabetes, 56,4% são hipertensos, 5,9%, fumantes e 15,5% têm alguma doença cardiovascular.
Segundo Lucas Costa, as sequelas mais comuns entre os pacientes que se submetem a longos períodos de internação são os problemas musculares e a lesão pulmonar crônica, males que limitam a autonomia do paciente mesmo em casa.
Tatuador era o pilar financeiro da família
Obeso e hipertenso, o tatuador Rômulo Gonçalves, 42, começou a sentir os primeiros sintomas de Covid-19 em maio do ano passado e ainda não se recuperou dos 97 dias que passou internado em dois hospitais de Fortaleza.
O primeiro sinal de que havia algo errado foram as oscilações de pressão. Em pouco tempo, ele se sentia tão mal que chegou à unidade de pronto-atendimento próxima à sua casa quase sem poder andar. Ficou ali três dias em uma cadeira até conseguir uma vaga na UTI do Hospital Leonardo da Vinci e ser finalmente intubado.
“Nesse momento, começou a nossa luta diária: a dele na internação e a nossa, porque não tínhamos como visitá-lo”, conta a esposa Roseliane de Oliveira, 31, que é dona de casa.
Foram dois meses só recebendo notícias por telefone, mas nem todos os dias elas chegavam. “A gente até compreendia que o médico não podia ficar ligando, eu preferia que ele cuidasse do meu marido, mas chegamos a ficar sete dias sem notícias. O pior é que nem tinha para onde ligar, ninguém mais no hospital podia dar informação”, relata Roseliane.
Quando ligavam, os médicos diziam que o estado de saúde era muito grave. Rômulo sofreu uma infecção, ficou com 80% do pulmão comprometido, teve trombose na perna esquerda e precisou fazer hemodiálise.
“Era piora em cima de piora, as notícias eram de agravamento da doença. Um dia, nos falaram que tudo o que a medicina podia fazer já tinha feito. E começamos uma corrente de oração mais forte”, diz a dona de casa.
Após pouco mais de dois meses, o estado de saúde de Rômulo melhorou e ele foi transferido para o Hospital Geral Dr. Waldemar Alcântara. Lá, ainda teve um edema pulmonar agudo.
Além da aflição pela falta de notícias, nesse período começaram também os problemas financeiros. Rômulo era o principal provedor da família de sete pessoas: além da mulher e dos três filhos, ele vivia com duas irmãs e um cunhado. Há pouco tempo, uma das irmãs, que dividia com ele as despesas, perdeu o emprego como vendedora de uma loja.
“Foi bem complicado, porque ele pagava aluguel, luz, alimento. Ganhava muito bem e sustentava todo mundo. Então, tivemos que pedir ajuda de familiares e amigos para comprar fraldas para ele, comida e remédios”, comenta Roseliane.
Atleta sofreu com a doença e ajuda no tratamento das sequelas
Em casa, os cuidados com Rômulo foram redobrados. A ferida aberta da escara e a traqueostomia se somaram aos efeitos psicológicos do remédio e da internação: no começo, ele não reconhecia a casa e passava parte do tempo triste e calado.
Hoje ele ainda tem que lidar com as limitações físicas, a dor e a dificuldade para fazer atividades básicas, como comer e ir ao banheiro sozinho. “Aos poucos, graças a Deus, ele está voltando ao que era antes. Ainda tem uma luta diária, mas é uma guerra e a gente está ganhando”, diz a esposa.
Rômulo recebeu apoio do Projeto Com.Vida, que reúne cerca de 500 profissionais de todo o país, que voluntariamente atendem pacientes e suas famílias na recuperação das sequelas da Covid-19. A ideia surgiu depois que a própria fundadora, a dentista Raquel Trevisi, 39, ficou 30 dias internada com Covid-19, 20 deles na UTI.
“Quando tive alta, só no primeiro mês gastei em torno de R$ 10 mil com fisioterapia, nutricionista, remédios e suplementação, entre outras despesas. Nesse momento, comecei a pensar: quem apoia as pessoas que não têm condições de arcar com o tratamento?”, conta Raquel Trevisi, que antes de pegar Covid-19 era atleta e participava de competições de crossfit.
Ela perdeu 25 kg no hospital e, quando enfim recebeu alta, saiu sem conseguir movimentar o corpo do pescoço para baixo, com uma tetraplegia temporária, e com a memória recente afetada. Pouco depois da alta, o pai, Hugo Trevisi, 72, foi internado e, em seguida, morreu de Covid. “Decidi investir no projeto, porque era como se cuidar da dor dos outros amenizasse a dor de perder o meu pai.”
Gratuitamente, Rômulo tem acompanhamento com fisioterapeuta, nutricionista e fonoaudióloga. Há pouco tempo, ele e a esposa começaram a fazer psicoterapia, para conseguir encarar os efeitos da doença. “Ele não se lembra muito do período em que estava internado. Então, quando a gente começa a falar sobre tudo que passou, ele sempre chora, agradece e diz que tem muita gratidão”, afirma Roseliane.
Sem reconhecer a família e a própria casa
Em São José do Rio Preto (SP), a professora aposentada Alfa Barbosa, 65, ficou 92 dias internada no Hospital de Base. Segundo Gilberto Barbosa, 77, marido de Alfa, ela ainda não se recuperou das sequelas da doença, mesmo cerca de cinco meses após a alta.
“Quando chegou, só se alimentava por sonda, não falava. Por conta dos efeitos da medicação, não reconhecia a própria casa. Foi um trauma profundo. Ainda hoje ela está acamada”, conta o aposentado.
Gilberto e a mulher foram internados juntos, com sintomas da doença, em agosto do ano passado. Ele ficou uma semana no hospital, mas Alfa passou três meses.
“O momento mais difícil foi quando o médico disse que ela precisava ser intubada, porque sabemos que dificilmente essas pessoas escapam. Ela tinha os olhos cinzentos e tínhamos medo de que ela não voltasse”, comenta Gilberto.
Foram 70 dias sem visitas, tempo em que o marido, quatro filhos e quatro netos receberam notícias apenas pelas chamadas da equipe médica. “A gente tem 45 anos de casamento, nunca passamos tanto tempo separados. Todo dia, na hora em que os médicos ligavam, dava até tremedeira por medo de vir uma notícia ruim”, afirma o marido.
“Alguns profissionais chegaram a nos falar que estávamos protelando o sofrimento, mantendo-a no hospital”, completa.
Quando enfim foi liberada para uma enfermaria comum, onde foi permitida a visita da família, dona Alfa não reconhecia ninguém. “Ela nem sabia quem estava lá para visitá-la. A gente só chorava, de tristeza, de vê-la daquele jeito”, relata Gilberto.
De acordo com ele, a perda temporária de memória foi uma consequência dos efeitos dos remédios. Outra possível causa, ainda sem diagnóstico preciso, seria uma alteração neurológica.
Assim que saiu do hospital, começou outro desafio, com fisioterapia diária para recuperar os movimentos perdidos por conta da longa internação.
“Faz cinco meses que ela está no home care, e os médicos dizem que a previsão é de pelo menos um ano de tratamento”, diz o marido. “Ainda não sabemos se ela vai conseguir voltar a dirigir, como fazia antes, mas tenho fé que em breve vai voltar a andar sozinha.”
40 dias de notícias só por telefone
Os primeiros sintomas de Arlete, que achava que estava com sinusite, surgiram no início de dezembro do ano passado, quando ela procurou um pronto-atendimento e foi orientada a voltar para casa.
Obesa, pré-diabética e com histórico de infarto, a dona de casa passou mal e precisou voltar no mesmo dia ao posto de saúde porque sentia muita falta de ar. Com auxílio de oxigênio, foi encaminhada de ambulância para o Hospital São José, em Joinville, onde teve que esperar três dias até ser intubada, já que não havia vaga de UTI.
“A gente estava se cuidando bastante. A minha mãe e o meu pai são idosos e moram com um irmão de 50 anos que tem uma deficiência. Os três eram grupo de risco”, afirma Edinei.
Assim que a mãe foi para a UTI, começou a apreensão diária da família por notícias. Elas chegavam diariamente apenas pelo telefone, já que as visitas estavam suspensas no caso de pacientes com Covid-19. Foram 40 dias assim.
“Às vezes, a ligação, que era para ser às 14h, só acontecia às 17h, e ficávamos à tarde esperando apreensivos. Um dia, o relatório era positivo; no outro, já não era tanto. Foi uma fase bem traumática. A minha irmã ficou muito abalada, chorava muito”, conta Edinei.
Para enfrentar esse momento, os sete filhos, ao lado de netos, genros e noras, decidiram se unir e fazer correntes de oração.
Depois de mais um mês com notícias só pelo telefone, ela enfim foi liberada para uma ala onde podia ver a família. “Fui o primeiro a visitá-la. Ela estava sedada, intubada, tinha muitas alucinações por conta dos efeitos dos remédios. Como estava sedada a maior parte do tempo, lembra-se de pouca coisa desse período. Para a gente, foi muito difícil”, conta o filho.
Por conta de uma infecção, precisou voltar para a ventilação mecânica, o que voltou a tornar os dias mais difíceis para a família.
Depois de ficar quatro meses internada, Arlete deixou o hospital em abril e, em casa, precisa fazer fisioterapia para voltar a mexer os braços e ombros.
“O psicológico dela está bem. Às vezes chora um pouco, porque era muito ativa. Mas sabe que estar viva é uma grande vitória. Hoje a gente só tem motivos para agradecer, porque a vida é maravilhosa. Precisamos valorizar as pessoas que a gente ama, porque isso que importa”, ressalta o filho.
via-CNN