As conclusões descritas no artigo se baseiam na análise de amostras sanguíneas de 1.285 moradores da cidade de Mâncio Lima, no Acre. O trabalho foi coordenado pelo professor da Universidade de São Paulo (USP).
“Nossos resultados evidenciam que as populações mais expostas à dengue, talvez por fatores sociodemográficos, são justamente as que correm mais risco de adoecer caso sejam infectadas pelo SARS-CoV-2. Este é um exemplo do que tem sido chamado de sindemia [interação sinérgica entre duas doenças de modo que uma agrava os efeitos da outra]: por um lado, a COVID-19 tem atrapalhado os esforços de controle da dengue, por outro, esta arbovirose parece aumentar o risco para quem contrai o novo Coronavírus”, diz Ferreira à Agência FAPESP.
O professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP tem realizado estudos no município de Mâncio Lima há sete anos com o objetivo de combater a malária. Em 2018, deu início a um projeto que prevê a realização de inquéritos domiciliares a cada seis meses, abrangendo 20% da população local. Durante as visitas, são aplicados questionários e coletadas amostras de sangue. No início de 2020, o projeto recebeu um aditivo da FAPESP para que parte dos esforços de pesquisa fosse direcionada ao monitoramento e à caracterização do SARS-CoV-2 na região.
“Em setembro do ano passado foi divulgado um estudo de outro grupo sugerindo que as áreas que registravam muitos casos de dengue eram relativamente pouco afetadas pela COVID-19. Como nós tínhamos amostras de sangue da população de Mâncio Lima coletadas antes e após a primeira onda da pandemia, decidimos usar o material para testar a hipótese de que a infecção prévia pelo vírus da dengue conferia algum tipo de proteção contra o SARS-CoV-2. Mas o que vimos foi exatamente o oposto”, relata Ferreira.
Metodologia
Foram incluídas nas análises amostras de sangue coletadas em dois momentos: novembro de 2019 e novembro de 2020. O material foi submetido a testes capazes de detectar anticorpos contra os quatro sorotipos da dengue e também contra o SARS-CoV-2.
Os resultados mostraram que 37% da população avaliada já havia contraído dengue até novembro de 2019 e 35% haviam sido infectados pelo novo Coronavírus até novembro de 2020. Também foram analisadas as informações clínicas (sintomas e desfecho) dos voluntários diagnosticados com a COVID-19.
“Por meio de análises estatísticas, concluímos que a infecção prévia pelo vírus da dengue não altera o risco de um indivíduo ser contaminado pelo SARS-CoV-2. Por outro lado, ficou claro que quem teve dengue no passado apresentou mais chance de ter sintomas uma vez infectado pelo novo Coronavírus”, explica Vanessa Cristina Nicolete, Pós-doutoranda no ICB-USP e primeira autora do artigo.
Os pesquisadores não sabem precisar as causas do fenômeno descrito no artigo. É possível que exista uma base biológica – os anticorpos contra o vírus da dengue estariam favorecendo de algum modo o agravamento da COVID-19 – ou seja simplesmente uma questão sociodemográficos, relacionada com a existência de populações mais vulneráveis às duas doenças por características diversas.
“Os resultados evidenciam a importância de reforçar tanto as medidas de distanciamento social voltadas a conter a disseminação do SARS-CoV-2 como os esforços para controle do vetor da dengue, pois há duas epidemias ocorrendo ao mesmo tempo e afetando a mesma população vulnerável. Isso deveria ganhar mais atenção por parte do governo federal”, avalia Ferreira.
O artigo Interacting Epidemics in Amazonian Brazil: Prior Dengue Infection Associated with Increased COVID-19 Risk in a Population-Based Cohort Study, de Vanessa C. Nicolete, Priscila T. Rodrigues, Igor C. Johansen, Rodrigo M. Corder, Juliana Tonini, Marly A. Cardoso, Jaqueline G. de Jesus, Ingra M. Claro, Nuno R. Faria, Ester C. Sabino, Marcia C. Castro, Marcelo U. Ferreira, pode ser lido em: https://academic.oup.com/cid/advancearticle/doi/10.1093/cid/ciab410/6270997
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Imagens: Bárbara Prado/ Acervo Moa Lab – ICB (USP)