Desde o fim de setembro, Uganda vive um surto de ebola que já deixou 44 mortos segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os casos na região, no entanto, têm uma característica diferente de outros contágios recentes, como os na República Democrático do Congo registrados mais cedo neste ano – é causado por outra variante do vírus. O principal desafio é que, enquanto a cepa mais comum conta com vacinas eficazes em manter as epidemias sob controle, a versão do vírus letal que circula agora em Uganda ainda não pode ser prevenida com imunizantes. Porém, em breve isso pode mudar.
— A melhor forma de saber se uma vacina funciona é testá-la para prevenir a doença. Como o ebola ocorre em surtos, esse é o momento de verificar se os imunizantes em desenvolvimento são capazes de prevenir a doença — explica o professor do departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e coordenador do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital das Clínicas, Esper Kallás.
Em coletiva de imprensa recente, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que duas candidatas a vacinas para a cepa do vírus que estão mais avançadas nos estudos podem ter o início dos testes clínicos em Uganda até o fim deste mês, parte de um esforço internacional para avaliar a eficácia das aplicações durante o surto da doença.
— Várias vacinas estão em vários estágios de desenvolvimento contra este vírus, duas das quais podem começar os ensaios clínicos em Uganda nas próximas semanas, aguardando aprovações regulatórias e éticas do governo de Uganda — disse o diretor-geral em coletiva.
Variantes do ebola e vacinas
Descoberto em 1976 no território que atualmente pertence ao Congo, o ebola é sempre recebido como uma alerta pela alta taxa de mortalidade – que pode chegar a 90% dos casos. Assim como os patógenos causadores da Covid-19, da varíola dos macacos e da aids, trata-se de uma zoonose, ou seja, um vírus tradicionalmente de animais que passou para humanos.
Existem cinco tipos conhecidos do ebolavirus, microrganismo da família Filoviridae causador da doença. A espécie mais comum do agente é o Zaire ebolavirus, conhecido somente por vírus ebola por ser o mais prevalente. Ele é o responsável pela maioria dos surtos registrados no continente africano, e foi inclusive a causa da maior epidemia da doença já identificada, em 2014, que deixou mais de 11 mil mortos em países da África Ocidental. Na época, houve inclusive o temor de que os casos iriam se espalhar para outras regiões do planeta.
Apesar do temor provocado toda vez que um surto é relatado, os especialistas explicam que o risco de o vírus chegar a outros países e continentes é considerado baixo. Isso porque ele é transmitido pelo contato direto com fluidos corporais, e não pelo ar, como é o caso do coronavírus. Além disso, como promove um quadro grave, o paciente é rapidamente identificado e isolado, com menos probabilidade de circular pela comunidade e disseminar o microrganismo. Por isso, embora os casos em Uganda sejam preocupantes, especialmente no contexto de emergência de doenças infecciosas no mundo, eles destacam que não devem ser encarados como um risco para o Brasil.
Em 2019, a primeira vacina para o ebola recebeu um aval no mundo pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), a Ervebo, desenvolvida pela farmacêutica Merck, MSD no Brasil. Na época, o imunizante foi testado na Guiné-Conacri, país mais afetado pela doença, e sua aprovação foi celebrada pela OMS como “um triunfo para a saúde pública e um testemunho da colaboração sem precedentes entre dezenas de especialistas em todo o mundo”. A aplicação utiliza um outro vírus geneticamente modificado para expressar uma proteína do ebola, que então é lida pelo sistema imunológico para produzir anticorpos e células de defesa.
No ano seguinte, a segunda vacina, chamada Zabdeno/Mvabea, recebeu o sinal verde da EMA, uma proteção em esquema de duas doses desenvolvida pela Janssen, braço farmacêutico da Johnson & Johnson. O imunizante utiliza uma tecnologia semelhante à empregada pelo laboratório na aplicação destinada à Covid-19, utilizada em países como Estados Unidos e Brasil.
Para induzir a resposta imunológica, recorre a um adenovírus 26, tipo de microrganismo que geralmente causa resfriados leves, geneticamente modificado para não se replicar no organismo humano. Com isso, ele leva de forma segura um pedaço do patógeno do ebola para dentro do corpo, que é reconhecido pelo sistema imune para dar início à produção das defesas.
No entanto, de forma diferente da Covid-19, por exemplo, em que as variantes do vírus têm maiores semelhanças entre si – e, por isso, conferem uma certa proteção cruzada –, as cepas do ebola são distantes geneticamente umas das outras, quase como vírus diferentes. Por isso, os dois imunizantes para o Zaire ebolavirus não são eficazes em prevenir a infecção pela variante do Sudão, responsável pelo surto atual em Uganda.
A boa notícia é que, de acordo com a OMS, existem no total seis candidatas em estágios mais avançados dos estudos. Três delas chegaram às fases 1 e 2 dos testes clínicos, o estágio em humanos composto por três etapas que avaliam, respectivamente, a segurança, a imunogenicidade (capacidade de induzir anticorpos e células de defesa) e, por fim, a eficácia real da vacina.
Porém, o fato de os casos da variante do Sudão serem mais incomuns é justamente o que também atrasa o avanço das pesquisas com os imunizantes. Isso porque essas etapas finais dos testes envolvem os participantes serem expostos na vida real ao vírus, o que, sem surtos da doença, acaba não acontecendo.
— Toda vacina ou medicamento precisa de um número mínimo de indivíduos para se comprovar o efeito benéfico. Então compara-se o número de pessoas que adoecem no grupo vacinado, com um grupo de controle, por exemplo. Os surtos e epidemias permitem que esse número mínimo, que é de dezenas, centenas, ou até milhares de pessoas, seja atingido com maior rapidez. Se uma doença contagiosa não circula, não tem como provar que um tratamento, ou uma vacina funciona. O grande número de casos da pandemia de Covid-19 foi um dos fatores que permitiu o desenvolvimento rápido das vacinas em meses, no lugar de anos, por exemplo — explica o médico infectologista do Centro Hospitalar do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz), Hugo Boechat.
Além da necessidade de esperar a ocorrência de surtos, os especialistas ouvidos pelo GLOBO falam ainda sobre o porquê de, apesar da alta letalidade, haver uma certa demora para o avanço de terapias destinadas ao ebola.
— É um desafio fazer com que infraestrutura adequada seja estabelecida no local onde ocorre a doença, que ocorre habitualmente em locais com recursos muito limitados. Também é importante enfrentar barreiras culturais locais, pois a doença costuma estar associada a crenças e notícias conspiratórias. Além disso, algumas das regiões afetadas pelo ebola são zonas de conflito, o que dificulta o estabelecimento de equipes especializadas em testes clínicos — diz Kallás.
Testes começam ainda em outubro
Agora, especialistas estão correndo para aproveitar o contágio emergente em Uganda para que ao menos o avanço da doença sirva para impulsionar a avaliação dos imunizantes em desenvolvimento para a variante do Sudão.
— Estamos nos movendo muito rápido desta vez e as pessoas estão realmente dispostas a trabalhar para colocar essas vacinas em prática — disse a especialista em vacinas da OMS que está coordenando discussões entre o governo de Uganda e as demais partes envolvidas, Ana Maria Henao-Restrepo, em entrevista à revista científica Science.
A candidata mais avançada foi desenvolvida pela farmacêutica GSK ainda em 2014, mas teve a licença posteriormente doada ao Instituto de Vacinas Sabin em 2019. Ela também utiliza um adenovírus para levar uma proteína do vírus do ebola para dentro do organismo. No caso, o adenovírus utilizado infecta apenas chimpanzés, sendo inofensivo para humanos.
Após reuniões, Henao-Restrepo contou à Science que essa é a primeira vacina que terá os estudos iniciados. Há ainda uma segunda candidata, desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, que combina em uma única dose uma proteção contra os vírus de Zaire e do Sudão. Ela utiliza a mesma tecnologia da vacina contra a Covid-19 criada pela universidade, que é também um adenovírus geneticamente modificado para não se replicar em humanos e levar o material do ebola para que o sistema imunológico aprenda a produzir as defesas.
As estratégias para os testes seguirão um modelo semelhante ao implementado na Guiné-Conacri para avaliar o primeiro imunizante aprovado contra a doença, em 2015. Em vez de distribuir a aplicação para a população geral e, após um tempo, comparar as infecções com um grupo que recebeu placebo, o método será oferecer a vacina a todos os contatos de pessoas contaminadas com o ebola – a chamada vacinação em anel.
A mudança é motivada por dilemas éticos, uma vez que esse público está mais em risco de sofrer uma doença altamente letal. Os pesquisadores consideram que não seria correto oferecer placebo a participantes dos estudos numa realidade em que a exposição ao vírus do ebola de forma desprotegida provavelmente levará ao óbito. No surto atual de Uganda, a taxa de letalidade está em cerca de 64%.
Para comparar os efeitos da vacinação, nesse método um grupo receberá o imunizante imediatamente, enquanto outros um pouco mais tarde. As diferenças na incidência de casos entre os participantes, mesmo que seja pequena uma vez que todos serão vacinados, são suficientes para gerar dados sobre a eficácia da dose.
“A oportunidade de uma resposta de vacinação será usada para avaliar a eficácia de uma das vacinas candidatas usando uma abordagem de vacinação em anel semelhante à usada para o ensaio da Guiné com a vacina Zaire ebolavirus, com a diferença de que apenas os contatos serão oferecidos vacinação para otimizar o uso de doses limitadas de vacina. Os protocolos estão passando por revisão regulatória e ética”, diz o relatório do Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas sobre Imunização da OMS (SAGE), que se reuniu na primeira semana de outubro.
Com informações O Globo